As conclusões do relatório independente sobre os incêndios de julho no Algarve estão em sintonia com as preocupações da Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP), sublinha o presidente Jaime Marta Soares depois de ter tido acesso ao documento técnico coordenado pelo investigador Domingos Xavier Viegas.
"Por aquilo que vi e ouvi das palavras ditas pelo professor Xavier Viegas, percebi que aquilo que eram as nossas preocupações e as nossas certezas estão agora contidas no relatório”, sublinhou o dirigente. "A proteção civil em Portugal funciona como um órgão coordenador de toda a atividade da estrutura de proteção civil, mas no terreno os operacionais é que comandam", considerou Jaime Marta Soares, defendendo uma estrutura de comando único, para uma "intervenção logo a partir do momento zero". Jaime Soares afirmou que a "descoordenação não se sentiu só naquele incêndio, houve noutros incêndios este ano e já também em anos transatos, e por isso há que procurar as soluções adequadas a situações que não dão tempo de espera".
Depois de analisar o relatório, Miguel Macedo, o ministro da Administração Interna, enviou o documento para a Assembleia da República, para a ANPC e para os presidentes da Liga dos Bombeiros Portugueses e das câmaras municipais de Tavira e São Brás de Alportel.
Num primeira reação, o presidente da Câmara Municipal de Tavira considerou que as conclusões do relatório sobre os incêndios de julho vão ao encontro da análise das autarquias, defendendo o reforço de verbas para a prevenção de fogos florestais. Ainda segundo o autarca Jorge Botelho o documento agora concluído "vai na linha do relatório da Liga dos Bombeiros Portugueses que referia que houve um conjunto de falhas neste combate associadas também a algumas questões do próprio terreno".
Para o autarca, neste momento, os esforços devem estar concentrados na recuperação das áreas ardidas, pretendendo "aproveitar a disponibilidade do Governo para ajudar a repor o potencial produtivo, o apoio aos casos sociais e os trabalhos na área agrícola".
"É importante que se faça o cadastro para podermos ir ao encontro das preocupações de proteção da floresta mediterrânica, ou seja, a necessidade de replantar corretamente com espécies adequadas, com mais organização", destacou.
Para Jorge Botelho este é também o momento para dar formação aos profissionais de proteção civil e de defesa da floresta e de disponibilizar meios para fazer a prevenção e limpeza da floresta.
"A ideia de que uma parte do dinheiro da proteção civil poder reverter para a limpeza das matas é muito interessante e considero que tem toda a oportunidade de fazer caminho depois da avaliação deste processo", acrescentou.
Também o presidente da Câmara Municipal de São Brás de Alportel é da opinião que as conclusões do relatório estão em sintonia com a análise das autarquias e espera que sejam feitas retificações.
A dificuldade de reposicionamento de meios, a falta de meios perante a dimensão que o incêndio atingiu, alguma descoordenação na determinação de alguns locais e falhas no conhecimento total do terreno por parte dos coordenadores são pontos destacados pelo autarca António Eusébio. "Efetivamente, sentimos alguma demora na chegada dos meios, nomeadamente a 19 de julho quando o incêndio se propagou até São Brás de Alportel, tarde fatídica em que o incêndio ganhou uma dimensão de tal ordem que acabou por dificultar muito mais a intervenção no terreno", recordou o presidente da câmara.
Os incêndios que atingiram a Serra do Caldeirão, entre Tavira e São Brás de Alportel, de 18 a 21 de julho, queimaram uma área aproximada de 24 mil hectares, sobretudo espaços florestais, de acordo com o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas.
O relatório independente foi pedido em agosto pelo ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, que alegou que a avaliação da ANPC não apresentava "recomendações, nem eventuais medidas corretivas a adotar em ocorrências similares".
ANPC faz leitura solitária
Alguns dias depois do relatório ter sido entregue ao Governo, a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) veio a público dizer que o documento confirma as observações já anteriormente apontadas, congratulando-se por este não atribuir falhas à coordenação dos meios de combate.
Numa nota tornada pública, a ANPC manifesta satisfação pelo facto de a avaliação, feita por especialistas do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra, "corroborar", em alguns aspetos, o relatório produzido pela Proteção Civil e entregue em agosto ao ministro da Administração Interna. Entre as "condicionantes da máxima relevância" identificadas pelo relatório independente, a ANPC destaca "as condições de propagação do incêndio, as dificuldades impostas pela dispersão de edificado e presença humana, a orografia desafiante ao combate, longas distâncias a percorrer e simultaneidade de ocorrências, locais e nacionais".
A Proteção Civil realça ainda o facto de não fazer alusão a falhas de coordenação dos meios de combate, e de reconhecer a estratégia de defesa de pessoas e bens, apesar de admitir que há aspetos sem "total coincidência na apreciação dos factos".
No comunicado, a Autoridade Nacional de Proteção Civil refere ainda que as recomendações propostas vão ser analisadas no âmbito do balanço do Dispositivo Especial de Combate e Incêndios Florestais (DECIF).
Xavier Viegas desafia MAI a não colocar conclusões na gaveta: Faltou antecipação e análise
O relatório não deixa margem para dúvidas. Domingos Xavier Viegas aponta várias falhas decorrentes da ‘frágil’ estrutura de prevenção, dificuldade de perceção do sistema de comando da localização do fogo e falhas na previsão da sua evolução. Em declarações ao ‘BP’, o investigador de Coimbra sublinha que este não foi um incêndio qualquer mas a incapacidade de antecipação foi determinante para tudo o que aconteceu após o ataque inicial.
Texto: Patrícia Cerdeira “Um dos principais problemas que encontrámos na gestão deste incêndio foi a de que não existia no Posto de Comando (PC) uma visão atualizada e correta da localização e possível evolução do incêndio. Este fato pesou, juntamente com outros fatores, na deficiente avaliação do potencial do incêndio em todas as suas frentes, o que conduziu a um atraso na resposta que as circunstâncias porventura requeriam”. É desta forma que o relatório coordenado por Xavier Viegas sintetiza a “incapacidade” demonstrada na avaliação daquele teatro de operações.
Em 214 páginas o relatório de caráter técnico e científico coloca preto no branco todas as fragilidades e potencialidades registadas, num incêndio de características complexas e que na opinião do investigador testou o SIOPS na sua capacidade máxima, desde que o Sistema Integrado de Operações de Proteção e Socorro foi instituído em 2006.
O documento sublinha como decisivos os seguintes fatores: “Condições de extrema secura da vegetação; ausência quase geral de faixas de descontinuidade; elevada densidade de casario e de pequenas habitações, relevo, elevada distância a distritos que pudessem fornecer meios de reforço; simultaneidade de ocorrências, avarias nos meios aéreos e subavaliação do potencial de evolução do incêndio”, sublinha o documento.
Num recado direto ao Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), responsável pela prevenção estrutural, o relatório denúncia a ausência de “papel interventivo” que a situação exigia. Xavier Viegas propõe mesmo o “reforço do peso dos departamentos de defesa da floresta contra incêndios, “dotando o ICNF de quadros técnicos especializados e dedicados plenamente a este importante problema”.
Dado positivo relatado no documento foi a prioridade dada à segurança de todos os agentes e populações envolvidas. Sublinha-se como meritório a “ausência de sinistrados” num teatro de operações desta dimensão.
Aos bombeiros e outros agentes Xavier Viegas tece rasgados elogios:
“Foi manifesta e reconhecida a dedicação e valentia dos agentes envolvidos, em particular os bombeiros, que se dedicaram com abnegação, muitas vezes com risco de perigo para a sua integridade física e quase sempre com inteiro desapego pelo seu descanso e bem-estar, e da sua vida pessoal e familiar”, pode ler-se na página 149.
Os elogios estendem-se também aos efetivos da GNR, nomeadamente ao GIPS, mas Xavier Viegas diz que “deve ser analisada” a organização e gestão da rede de postos de vigia. No caso em apreço, o relatório denuncia que na zona onde ocorreu o incêndio a rede estava desativada no “período da noite”.
Em vários momentos Xavier Viegas apela ao Governo para que facilita a utilização de meios tecnológicos. Sistemas de deteção precoce por infravermelhos, GPS nas viaturas dos operacionais, registo de imagens nas aeronaves, no fundo, uma panóplia de instrumentos de apoio à decisão que já existem no mercado mas que continuam a ser desvalorizados pelo nosso sistema.
Para as Forças Armadas, Xavier Viegas preconiza uma nova visão com “formação em combate a incêndios” a alguns dos seus efetivos. O investigador diz mais: “(…) Deveria ser agilizada a mobilização dos meios militares para reforço de ações de vigilância e rescaldo. Deveria estudar-se igualmente a necessidade de reforçar os meios da GNR nas ações de evacuação das pessoas”.
Já sobre os meios aéreos, Xavier Viegas insiste numa questão antiga, a utilização de retardantes. “É imperioso haver coordenação dos meios aéreos a fim de evitar perdas de tempo e eficácia e tirar-se assim o maior partido possível deste recurso. Recomenda-se a utilização de produtos químicos nas descargas sempre que possível”. Ainda no que concerne às recomendações, o relatório, que contou com a participação de outros sete especialistas, sublinha que faltaram meios em momentos cruciais:
“Parece-nos que a mobilização de meios poderia ter sido reforçada durante o período seguinte (logo após o ATI), para se poder assegurar a supressão do incêndio durante o dia 19”. E para esta estratégia defende Xavier Viegas deveria ter contribuído de forma mais eficaz a leitura aérea do incêndio: “Nos REVIS aéreos, em que são feitas observações importantes para a tomada de decisões, não se deve limitar o percurso e voo ao perímetro imediato do incêndio, mas antes observar a área envolvente, a fim de se poder conhecer e avalizar as opções referidas”, sublinha.
Entre as inúmeras recomendações inscritas no relatório, destaque para a necessidade de apostar na “comunicação” e “formação” das populações”, para que estas possam constituir equipas de autodefesa”, dotar os autarcas de “maior formação” sobre os problemas associados aos incêndios, entre muitas outras questões.
A terminar, Xavier Viegas deixa um recado claro ao Governo e a todos os que estiveram envolvidos neste grande incêndio: “Se se pode admitir que haja falhas por falta de advertência ou de conhecimento, não é tolerável que, por desleixo, não se tomem em conta os avisos e recomendações que são feitos”, adverte o investigador que dedicou este trabalho técnico a todos os que sofreram na pele as consequências deste incêndio, o maior deste ano.
“Este trabalho é dedicado a todas as pessoas e entidades que sofreram com este incêndio e também às que se esforçaram, de uma forma abnegada e por vezes heroica, antes, durante ou após a sua ocorrência, para minimizar os seus impactes, numa luta que deve ser de toda a sociedade”, escreve o investigador de Coimbra.
por BP