Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]

diariobombeiro


Sexta-feira, 01.04.11

3ª História de Vida (e morte) dos Bombeiros Portugueses

(...)
Nas margens do Ceira a calma dos dias de sempre estragada com o roncar dos motores das motas que vinham para a concentração. Eram às centenas. O Multibanco esgotou as reservas, ainda que porventura tenha sido reforçado a contar com mais gente a precisar de dinheiro e enquanto uns esfregavam as mãos por verem ali maneira de amealhar bastante mais do que um ano de pasmaceira garantiria, outros gritavam raios e coriscos por terem escolhido terra perdida, calma, e agora se verem no meio de tantos metros cúbicos de cilindrada em motores que toda a gente conhecia ou, pelo menos, já ouvira falar.
Com a calmaria quebrada e a garantia de que nos dois dias seguintes o Ceira haveria de ser falado pela concentração de motas, o que preocupava era a cor do céu à mistura com o cheiro tramado mas agradavelmente intoxicante de pinheiro bravo queimado. Foi num instante: primeiro, começaram a aparecer umas pequenas nuvens fugidias, acastanhadas mas sem cheiro; depois, o sol ficou vermelho e as nuvens ficaram bem mais densas até se tornaram numa só. Aí, o cheiro já só se suportava pelo maquiavelismo patético de quem já estava farto de ver o país a arder pela televisão. Era uma sensação estranha de se explicar: em todo o lado onde houvesse canal televisivo as imagens que se viam eram as mesmas: gente a correr com baldes de água, mangueiras de regar jardins a cumprir a função de agulhetas de 50, pessoal com olhos cansados de noites perdidas e lenço branco, mas seboso a tons de castanho, a tapar-lhes metade da cara. Depois vêem-se também carros de bombeiros em correria desenfreada, meia dúzia de palavrões estrategicamente ditos para que os microfones acoplados nas câmaras de televisão os captem e gente, muita gente a dizer mal dos bombeiros e, geralmente, a invocar o nome de Deus nos impropérios. Assim: "Quando são precisos nunca aparecem, valha-nos Deus!"
Foi este o quadro do Ceira no fim-de-semana. Motas para baixo e para cima, cavalinhos e "cavalonas", bebedeiras - muitas - e o sol tingido de vermelho envergonhado não se sabe se pelo fogo se pela sina anual de ver arder a floresta à volta. É estranho mas a 250 quilómetros de distância, aqui pelos arrabaldes de Lisboa, o frenesim era quase igual àquele que se vivia por terras de Coimbra. (...)
Em Lisboa era diferente. O frenesim tinha tão só a ver com o facto de ter caído no quartel a informação de que, por indicação do Centro Nacional de Operações de Socorro (CNOS), se admitia como certa uma ida em coluna - o termo é militar mas aplica-se - de gente e autotanques dos corpos de bombeiros da zona para os fogos que tingiam de negro a mancha verde que ainda sobrava no distrito de Coimbra. Desde que o telefone "vermelho" - de ligação directa ao centro decisor - tinha tocado que se corria à lufa-lufa para demonstrar total disponibilidade para seguir na "excursão". Vivia-se, assim, uma azáfama esquisita nas gentes que, um dia, haviam jurado sobre o mesmo regulamento: o de bombeiros voluntários.
Os de Coimbra, ciosos, justamente ciosos, queriam "dar cabo dele" depressa para evitar que os "snobs" de Lisboa lhes fossem dar ordens; os de Lisboa, peneirentos, não se cansavam de fazer crer (bastava olhar para eles) que o fogo do Centro só seria resolvido, mesmo, com a sua chegada.
E foi assim - uns a considerar que não precisavam de bombeiros da cidade e outros a considerar que os da terra não se amanhavam com o fogo - que uns e outros foram sentenciados pela rádio do comando: "Coluna a caminho. Bom trabalho!" Não se sabe quem falou nem interessava muito. Para uns e para outros, os lugares de comando obedeciam àquilo que eles entendiam como um "dolce fare niente" (...)
E, se é estranho que em casa, quem está por fora dos bombeiros mas vive com eles, desse graças ao Senhor por o fogo estar lá por longe, em cada farda, em cada capacete ou dono seu, a ânsia era a de saber as horas da partida. Estranha vocação, esta, de achar que salvar, mais do que uma obrigação, é uma filosofia de vida. Estranha vocação, esta, de encontrar numa guarnição quem assuma que ir para o fogo a 250 quilómetros de distância é contributo suficiente para dar cabo dele e outros tantos que encaram o "passeio" com isso mesmo: "uma ida ao fogo".
Recebida a indicação de partida, a tarefa que se seguiu foi a de informar, lá para casa, que o próximo dia, os próximos dias, sabe-se lá por quanto tempo, o nome e fotografia do bombeiro bem que podiam ter por cima o carimbo "ausente". Conversas de telefone rápidas. Assim:
- Vou seguir na coluna para Coimbra. Avisa o patrão - dizia o bombeiro à mulher.
- Ah vais? Pois olha que... Não tinha tempo a mulher de dizer o que lhe dava na real gana. Que o patrão já tinha avisado que os clientes não se interessam se os empregados são bombeiros ou não - querem é prazos cumpridos - que uma ida em coluna significava noites sem dormir sempre à espera de notícias más vindas pela televisão, pela rádio ou pelo telefone numa chamada seca a dar conta de um problema ou lamento. Os bombeiros que iam em coluna eram, aqui, estranha contradição, suficientemente egoístas para, na busca de salvar quem não conheciam, deixar os seus com o coração nas mãos. Nunca ninguém há-de perceber esta contradição. É bem verdade que no dia seguinte, na conversa de circunstância feita junto à banca da fruta no mercado da terra, bem que a mulher haveria de ouvir loas à coragem do marido; bem que as imagens da televisão haveriam de privilegiar carros de bombeiros vindos de longe, imagens de combatentes distantes. Haveriam, essas imagens, de dar imagem maior do monstro - que de tão grande justificara deslocações tamanhas. Bem que haveria de ser assim que, se o ego ficava maior, o coração haveria de bater mais forte e descompassado numa arritmia estranha só estabilizada quando o telefone voltasse a tocar para dizer: "Estou de regresso. Saímos daqui a nada..."
Não foi por isso de estranhar que motores a trabalhar e quilómetros palmilhados, desajeitados conforme se podia na caixa de transporte dos carros, muitos fossem os que, ainda nem metade do caminho estivesse percorrido, davam por si a pensar se valia a pena tal sacrifício. Uma hora depois da saída do quartel as conversas já tinham esgotado os "depósitos" de treta que faziam parte das reservas de cada um. Por dentro, sem que ninguém os ouvisse, muitos assumiam o patamar - não se sabe se de crítica se de inveja - de pensar que a obrigação de tal sacrifício haveria de caber aos que o Estado paga por força de uma inscrição atempada nos Grupos de Primeira Intervenção - que por não terem razão para actuar nas suas áreas de intervenção, eram chamados a actuar nas áreas vizinhas. E, enquanto isso, nas guerras corporativas haveria de se ouvir nas notícias o reclame de críticas daqueles que, por serem profissionais e por isso remunerados, haviam ficado nos quartéis por capricho dos dirigentes (sabendo-se que o grande desejo deles era saírem para um qualquer lugar - porque afinal, também estes são bombeiros como os outros e sentem na pele o orgulho e brio de tão nobre missão).
Ainda assim, os que chegaram ao destino, à porta da "cidade dos doutores", fizeram-no com tamanha genica que, ali chegados, o importante agora era trabalhar. E as discussões parvas que se ouviam agora teriam pouco a ver com estratégias de combate ao fogo. Implicitamente desenhadas por quem conhece o terreno - os bombeiros da zona:
- Vocês vieram de tão longe - dizia o chefe o Coimbra - é melhor irem descansar e começar amanhã de manhã neste lado da serra. E apontava para o mapa.
- Isso é que era bom. Eu e os meus homens fizemos cinco horas de caminho para agora ir dormir? Isso é que era bom. Vamos actuar e já...
E nem os argumentos de que à meia-noite, sem conhecerem a as manhas da serra, seguindo a intuição da actuação pelo desenho que o fogo riscava a serra, podia ser perigoso ir para o terreno, demovia os que se tinham feito à estrada. É por isso que, dizem, as críticas que se seguem de uma intervenção desta natureza vão quase e sempre no sentido de apontar erros ao posicionamento dos bombeiros no combate as chamas. É por isso que as televisões enchem os noticiários de gente mal-amanhada, apanhada de surpresa pelos estalidos da caruma a rebentar quando dormiam, a gritar: "Que é que eles andam aqui a fazer?" Isto logo seguido de um plano de corte onde se vê passar um carro de bombeiros de corpo geograficamente instalado a dezenas - às vezes centenas - quilómetros de distância do fogo.
Os bombeiros que partem de longe para o fogo não conhecem o terreno que pisam. No fim, quando os presidentes da câmara enchem os salões nobres para as conferências de Imprensa são tratados como outros: a sua descoordenação foi responsável pela destruição da serra. Reclamam aviões, reclamam subsídios, reclamam demissões e fazem política, esquecendo-se que, meses antes, haviam recusado as máquinas de rasto para abrir aceiros na serra porque, na devida altura, esse trabalho haveria de ser feito por cantoneiros desempregados e sem custos. Sabendo-se, também, que os cobres poupados na contratação das máquinas, haveriam de ser canalizados para o foguetório das festas da cidade e para o lanche aprimorado quando o "ministro de tal" visitou a terra.
Pavões! Os homens da terra, não os bombeiros.

No meio dos recortes do cacifo, arrumados agora um a um numa caixa de sapatos, Carlos acabou por encontrar um exemplar do "Correio da Manhã", onde esta ida a Coimbra era relatada ponto por ponto. Estava ali guardado porque a primeira página do jornal, dobrada em quatro, tinha a fotografia de um bombeiro, papos de olhos pretos e, para lá dos papos, os olhos do rapaz que nem precisara de ir tão longe, em coluna e ralações, para se ficar na berma da estrada. Carlos arremessou com violência o pedaço de jornal para o monte de recortes que passo a passo, arrumavam a vida do miúdo. E arremessou, assim de ganas, porque ao lado da fotografia o título dizia  
"Bombeiros impotentes para lidar com o Inferno".
Impotente sentia-se ele, ali, a arrumar as coisas do "filho" como se estivesse a arrumar-lhe a vida. Não haveria de ver o recorte nunca mais. Se não fosse por respeito e controlo da raiva, sabia bem qual o destino a dar ao pedaço, já amarelecido, de jornal.
"Impotentes para lidar com o Inferno"... "Impotentes para lidar com o Inferno"... O título, em corpo 32, a negro, batia-lhe na cabeça como um martelo pilão. Impotente estava ele agora para trazer de volta o miúdo. Que Inferno, dois dias depois, tinha desaustinado para outro lugar e a cidade voltava agora a ser notícia mas pelas latadas dos estudantes e as festas do futebol. Estava impotente o Carlos. Porque a cidade perdera-lhe o respeito.
Como sempre, aliás. Experimente-se ver os bombeiros lavados e vestidos à civil, sem farda nem divisas que os identifiquem, e não se lhes há-de notar qualquer diferença dos demais cidadãos. Até porque, à sua maneira, todos se sentem um bocado bombeiros: nos "bitaites" que são capazes de mandar perante uma qualquer situação de perigo; no sentimento que todos têm (ou dizem ter) de serem muito bem capazes de ajudar o próximo sem pedir nada em troca. Se é esta a síntese dos bombeiros, então, em cada português há um "bombeirinho" à espreita. Numa ou noutra ocasião; num ou noutro local.
A verdade é que não é assim. Ainda por cima, com uma discussão permanente sobre a profissionalização dos "soldados da paz", não falta quem se disponibilize para criticar sempre que algo corre mal. Ou melhor: sempre que algo não corre segundo lhe agrada. E, então, sucessivamente, todos os dias, sempre, há-de aparecer gente a reclamar pela intervenção tardia dos bombeiros ou, ao contrário, pela intervenção rápida mas sem critério; a reclamar por falta de organização ou por organização a mais que os levou a estar uns bons cinco minutos a estudar mapas antes de intervirem; quem se queixe que a ambulância era alta; o bombeiro gordo; a maca pesada e o bombeiro magro.
São discussões que mantêm vivas as pessoas, mas que aborrecem quem por lá anda.

fonte: texto transcrito do livro Fénix - Histórias de Vida (e morte) dos Bombeiros Portugueses
de autoria Paulo Barbosa

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Diário de um Bombeiro às 12:39

Terça-feira, 29.03.11

2ª História de Vida (e Morte) dos Bombeiros Portugueses

É bem verdade que umas quantas vezes a saída para o socorro era propositadamente desenfreada. É certo e sabido que quem telefona para os bombeiros acha sempre que é urgente. Mais: a nossa urgência é sempre maior que a do outro - nem que o outro esteja, de facto, a viver o maior dos dramas. Depois, há que ter em conta que o nosso tempo, o dos aflitos que telefonam, nunca há-de ser o tempo dos bombeiros. E por muito depressa, por muito eficaz, por muito pronto e recto, o socorro há-de ser sempre tardio. Sobretudo, se as coisas correm para o torto. Por isso, ainda hoje, não é raro ver-se (ler-se) críticas que apontam para o facto do socorro ter... demorado muito.

Ontem fora assim...

Do largo onde estrategicamente estava montado o quartel dos bombeiros à Rua Almeida Garrett, para onde ia agora a correria dos carros de fogo e onde, dizia-se, a casa ardia com crianças lá fechadas, não distavam mais de oitocentos metros. O que, em bom rigor, não significava que fosse... já ali. O trânsito da grande cidade tinha armadilhas próprias para surpreender os carros que, para serem eficazes, eram também grandes. Depois, haveria que contar com os imponderáveis que iam do mau estacionamento, à velhinha na passadeira, ou, como foi o caso, àquele eléctrico que, seguindo pachorrentamente nos trilhos, desenhados e construídos no chão, não podia desviar a sua marcha. Bem que as pontes americanas com luzes de cor azul e alarmes cada vez mais electronicamente estridentes despertavam para a iminência do socorro. Bem que podiam gritar, ali, de pulmões abertos, "ti-nó-ni”, deixem passar", que o eléctrico só se desviaria quando os carris desenhassem no chão esse desvio.
Antes de dobrar a esquina de acesso à rua onde se vivia um bocado de inferno, ele já mostrava um pedacinho por cima dos telhados amarelecidos dos prédios. Fumo negro saía em golfadas como que a mostrar o que era bom, para aquela guarnição, estar preparada para o pior. O Carlos olhou para cima, viu o fumo, mas fez de conta que não viu... preferiu ligar para o quartel, via rádio, e antes mesmo de se inteirar do quadro que tinha pela frente, mandou avançar duas ambulâncias e um carro com mais água. Ainda deu um recado do género "liga para a loja a dizer que não vou trabalhar". Era um hábito: pôr o trabalho para trás dando benefício aos bombeiros.
Entrados na rua do fogo, não sem que antes o carro tivesse dado um ligeiro safanão de traseira passando a escassos centímetros do pára-choques de um velho Ford estacionado à saída da curva, o espectáculo do costume estava à vista. Uma mulher, de robe vestida, ora punha as mãos na cabeça, ora apontava para as águas furtadas, ora se abraçava ao pescoço do vizinho... em pânico.
- Tanto tempo e os miúdos lá dentro. Estão mortos, é o que estão. Tanto tempo - exclamava.
É mentira. Não era tanto tempo assim. Entre a chamada de socorro e a chegada dos primeiros carros não teriam passado, bem contados, mais de quatro minutos. Uma eternidade para quem está à espera.
O primeiro carro parou um pouco mais à frente da porta de acesso ao prédio de onde saía o fumo, de maneira a que a auto-escadas ficasse de frente para a fachada principal do prédio.
É um norma quase elementar.
E, aí, há que desligar do pedaço de mundo que rodeia o palco das operações. Apareceu o dono da loja de mercearia da zona a dizer que aquilo é quase "um armazém de bilhas de gás", um taxista que nem sequer sabia ao certo o que se passava sempre foi adiantando que o melhor era nem sequer tentar as escadas, porque "aquilo está cheio de fumo" e a mulher, em pânico, mãos na cabeça, cabeça no ombro do vizinho, já não dizia coisa com coisa.
Falava em crianças, em comida ao lume, em napperons ardidos, em esquentadores. Falava quase uma linguagem imperceptível, tanta era a informação que pretendia dar.
É neste momentos, de maior confusão, que importa ter líderes. Ainda que pareça pouco razoável não dar atenção a quem está em pânico, o Carlos resolveu as coisas de duas "penadas": mandou calar a mulher, entregando-a aos cuidados de uma vizinha - até vir a ambulância, disse - e ordenou que dois bombeiros subissem escadas acima, de máscaras na fuça e agulhetas, para "dar cabo dele".
- Com cuidado. Vejam lá os putos. Que se lixe o fogo. Vejam lá os putos - recomendou.
À pressa, ainda meteu um walkie-talkie no bolso do bombeiros que ia seguir escadas acima. Depois, mandou arvorar a escada até à janela das águas-furtadas e meteu-se nela até lá acima. Já lhe doíam os rins - não sabe se da idade se dos nervos - mas subiu as escadas, degrau a degrau, respeitando aquilo que empiricamente já tinha na cabeça, coordenando o pé direito no degrau com o braço esquerdo um pouco acima da cabeça, o braço direito um pouco acima da cabeça com o pé esquerdo no degrau. Subia mais depressa e em equilíbrio.
- Já chegaram? - perguntou pelo rádio portátil.
- Estamos a chegar - disse o bombeiro que, estranhando a voz que lhe vinha dos fundilhos das calças, cedo percebeu que fizera asneira ao esquecer-se de meter o rádio à sacola quando arrancou a mangueira do carretel do pronto-socorro.
- Estamos... a... chegar - repetiu, cansado.
O Carlos riu-se para dentro a pensar que a subida das escadas interiores a pé, com vinte quilos de material às costas - machado, capacete, mangueira, garrafa de ar comprimido e umas botas de quilo e meio de borracha calçadas -, haveria de cobrar os pulmões a saga de dois maços de tabaco por dia.
- Está demasiado fumo. Não se vê nada. Vai a pontapé? - questionou o bombeiro.
- Vai como der jeito - respondeu-lhe o chefe sem pensar, sequer, que todos os dias, em dias de instrução, avisava para os cuidados a ter com o arrombamento de áreas onde o fogo se estendia sozinho. Estava nos livros, vira-se nos filmes, que uma entrada repentina de oxigénio podia acordar o fogo e dar-lhe tamanho e violência diferente. E perigosa.
- Foi a pontapé, mas não é aqui - respondeu-lhe o bombeiro depois de meter uma porta de madeira dentro com biqueiro bem junto à maçaneta da entrada.
- Aqui não há nada - confirmou, depois de entrar hall adentro na casa vizinha do fogo.
- Vê lá se fugiu... - gozou irritado o Carlos. Estava ele quase a chegar mais depressa, com sessenta anos bem medidos a subir por cinco lanços de escadas onde só o seu corpo cabia, que os seus subordinados, em escadas normais de prédio.
- Já entrámos - ouviu do outro lado do rádio.
- Já entrámos mas o fumo só vem da cozinha. Onde estão os putos? - perguntou o bombeiro para o colega, ao mesmo tempo que via que a razão de tanto fumo era explicada pelo facto de uma trouxa de roupa estar o fogo sem mostrar lume.
O que acontecera percebia-se pelo quadro à vista: pouco a pouco a cozinha fora lambida pelas labaredas que tinham saído de uma frigideira com óleo que a dona da casa deixara queimar demasiado enquanto se distraía, lágrima ao canto olho, com o enredo da telenovela depois de almoço. Ainda estava a dar a novela. Pelo menos, a música que vinha da sala era a do genérico de uma.
Os bombeiros entraram na casa onde estava o fumo, a trouxa de roupa, a frigideira queimada, a televisão ligada e... os putos.
Já são três. O chefe de equipa já se tinha juntado a eles. O fumo tinha tomado conta da casa e era difícil perceber o que era o quê no meio da confusão. Pelo caminho, na lufa-lufa de encontrar os miúdos, um deles deu uma joelhada nos braços de um cadeirão que o fez largar o "dasse!". O colega riu e, tacteando, de joelhos, aquilo que se assemelhava ao desenho de uma cama, procurou por baixo, não fossem as crianças terem-se refugiado ali. Outro (o mais velho do grupo) procura por cima e dá com uma.
- Tá aqui uma! Tá aqui uma! - disse, mantendo premido o botão do rádio durante tanto tempo que, ainda a assomar à janela pelo lado de fora, o Carlos ainda ouviu outra voz dizer:
- Tá aqui outra!
De joelhos, o bombeiro que fazia a busca debaixo da cama estendeu os braços e agarrou uma das crianças, levando-a para longe daquele fumo que iria deixá-la respirar por muito mais tempo. A outra criança foi recolhida pelo chefe que tinha dado com elas, e uma terceira pelo outro bombeiro que participava na busca. Eram três ao todo. A mais velha tinha quatro anos, a do meio dois e a mais pequenina, se tinha um anito era muito.
Todas elas tossiam bastante.
- Comeram bastante fumo - comentou para os colegas.
- Já passou não já? - falava agora para um dos miúdos, o mais velhinho.
O miúdo só respondeu um monossílabo:
- Vó!
- A avó. Vamos à avó - disse o bombeiro, ao mesmo tempo que sentia os bracitos enrolados à volta do pescoço e o miúdo escachado, muito apertado de encontro ao seu peito.
Não há medalha como esta, pensou. Não pode haver!
As outras eram demasiado pequenas para terem a noção do que se tinha passado.
Apareceu no local o INEM que examinou as crianças; a Protecção Civil que ficou a tratar do realojamento e da guarda das crianças; apareceu a Polícia.
Só não apareceu a avó das crianças que tinha ido na ambulância, já que desnorteara numa ideia fixa de que tinha morto os miúdos por causa de se esquecer da frigideira ao lume enquanto via a novela.
- Raio da velha - diziam uns.
- Raio da novela - diziam outros...
Para acrescentar:
- Isso é de um vício tamanho que a minha até se esquece do almoço. Raio da novela...
Entregues os miúdos, extinto o pedaço de fogo que moía a roupa - extinto na rua já que a trouxa foi trazida ao "colo" até cá fora, o trabalho dos bombeiros estava feito. Ainda que lhes apetecesse, não estavam ali para julgar. Estavam para socorrer e foi isso que fizeram. Era hora de arrumar o material e regressar ao quartel. Já sem pressas, sem sirenes, sem os nervos do eléctrico nem os aselhas que não sabem adequar a condução ao barulho de um alarme deles.
Nunca lhes foi transmitido por parte das hierarquias superiores nenhuma palavra de conforto e de que tinham executado um bom trabalho. Não tiveram louvores nem medalhas. A única pessoa que se lembrou deles foi a dona da habitação, a quem eles, por engano, arrombaram a porta. Grata pelo trabalho que os bombeiros tinham feito e por pensar que estes arrombaram a porta para ver se se encontrava alguém dentro da casa, esta senhora fez questão de deixar uma simbólica importância no quartel dos bombeiros, em jeito de agradecimento, para aqueles que lhe deram cabo da porta, no intuito de fazer um bom trabalho.
Todos eles continuam ao serviço e ainda bem.
A verdade é que agora, ali, haveriam de ser muitos os que perguntavam a sim mesmos se valeria a pena. Afinal, a falta de agradecimento era agraciamento garantido. (...) o tempo haveria de curar a ferida de ver o miúdo rebentado aos 19 anos, namoro firmado e casamento aprazado para daí a não se sabe quanto tempo. O tempo cura tudo e não haveria de faltar muito para que, depois de arrumada a bandeira da associação erguida a meia-haste no pau mais à direita dos três que davam as boas-vindas a quem chegava ao quartel, as flores murchassem na campa rasa do talhão privativo que havia lá no cemitério da terra (...)
Era por isso que, embora a frieza da análise magoasse, haveria quem julgasse não ser merecido chorar sobre leite derramado. Pôr as glândulas lacrimais ao serviço daquela morte haveria de soar a lamechice para muitos. E, em boa verdade, para além dos que lhe sentiam o cheiro todos os dias, haveriam de ser poucos os que lhe guardavam espaço no pedaço de memória para futuro.
O que mais doía ao Carlos era saber que ele haveria de ser o primeiro a dar o exemplo nesta insensibilidade que, sendo de todos, haveria de ser mais notada nele. è certo e sabido que haveria de alfinetar um "fumo" negro no braço e que com ele haveria de partilhar o dia-a-dia durante não mais de dois ou três meses. Não é certo que se deixasse abalar nas lides futuras sempre que fosse chamado aos bombeiros, por estar preso à má recordação da morte do puto.
O chefe já se tinha habituado a ver cenas destas e lidara com elas sempre assim. Já perdera amigos desta maneira. Já vira um colega enfiar-se literalmente na grelha frontal de um carro quando vinha desenfreado de casa, de mota, a caminho do toque da sirene e vira-o, poucas horas depois, finar-se em S. José por força de tão mau trato. E já vira um outro deixar-se a contragosto ir na enxurrada de umas cheias maiores até se perder de vista nas águas do Tejo - e, ainda que hoje herói no quartel, com romagem garantida em tempo de aniversário e lápide a marcar o nome de rua, não consta que fosse mais do que simples recordação de "morto em combate". Estranha forma de viver a morte, esta: tanto choro num dia; quanta amnésia páginas tantas passadas.
Se de drama se trata, um quartel de bombeiros vive a morte dos seus como vive a morte dos outros. (...) A rotina do sofrimento dos outros já parecia não fazer-lhe mossa. E, se bem que não fosse dado a grandes poesias, ainda se perdeu no olhar para um pedaço dela, num papel amarrotado. E onde se dizia assim:

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo no chão, apodrecidos.
       Eugénio de Andrade

Era assim que ele se sentia neste momento. Apodrecido. Ainda que a condição do que se deitava lá em cima no salão nobre fosse mais própria desse caminho da decomposição, ele estava marcado por dentro. Moído. Não dizia coisa com coisa nem fazia coisa com coisa. A morte batera-lhe à porta, desta vez, sorrateira numa chamada para o telemóvel a dizer-lhe que o puto se finara. E, por muito rijo, por muita morte, por muita falta exterior de sentimento, esta dera-lhe forte. Quase a levá-lo, também.

fonte: texto transcrito do livro Fénix - Histórias de Vida (e morte) dos Bombeiros Portugueses
de autoria Paulo Barbosa

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Diário de um Bombeiro às 16:18

Terça-feira, 29.03.11

1ª História de Vida (e Morte) dos Bombeiros Portugueses

Carlos era bombeiro desde os 22 anos, já tinha mais de 60 em cima e continuava bombeiro. Com o crachá de Ouro da Liga dos Bombeiros Portugueses, lembro-me de o ver "enchouriçado" numa farda de gala - que fazia gala em nunca vestir - para receber a mais alta insígnia dos bombeiros portugueses numa festa de aniversário do corpo de bombeiros a que sempre pertenceu. Tinha aversão a essas práticas de ostentação, ainda que só lhe pedissem, naquela altura, que esticasse o peito para receber o crachá - uma estrela dourada que brilhava sempre que qualquer raio de luz assentava os olhos nela e que hoje, deve estar arrumada num qualquer canto da casa sem cuidados de maior. Até porque, com a aversão que tem às festas de gala onde se exibem condecorações do género, não é líquido que saia alguma vez dali. Se calhar, e se for intenção dele ir vestido de gala para o talhão que os bombeiros têm no cemitério, só nessa altura se vai voltar a ver o quão brilhante é a estrela da Liga.
Até que isso aconteça, o mais certo é a estrela de tantas pontas, reluzente, estar presa ainda à farda ou num amontoado de tralha onde se misturam outras medalhas, daquelas que quase todos têm - pequenas fénix de prender aos bivaques, divisas, galões ruços de tanto uso, algodão de polir ainda na caixa por estrear - que a aversão à farda de gala não justifica polimentos -, mosquetões, chaves antigas de cacifos que já não se usam, moedas, canecas secas e sem uso... tralha.
Ainda assim, hoje estava a mirar a condecoração com os olhos marejados e a pensar se alguma vez merecera aquilo. Decerto que não merecia. Afinal, fora por causa dele e de uns tantos como ele que o puto estava ali estendido, tapado com um napperon de renda branca para que não se lhe vissem os sinais que lhe estragavam a cara. E, ainda que assim não fosse, não haveriam de faltar, na formatura ao lado, histórias de marcas estampadas no rosto e no corpo de dezenas de bombeiros sem mácula. Era destes que a história gostava. Eram estes, os sem mácula, que apareciam - agora cada vez mais -  nas televisões e nos jornais. Fosse por um parto bem sucedido, fosse por um salvamento na estrada, fosse, entendia ele e estava velho, porque qualquer coisa servia para aparecer na televisão e nos jornais. Para, num grau de histeria desenfreada, correr a avisar a família e os amigos para verem o Jornal da Noite, da SIC, o Jornal Nacional, da TVI, ou o Telejornal, da RTP. A preferência pelo canal variava consoante fosse aquele que lá estivera horas antes a estorvar no socorro, mas a garantir meia dúzia de minutos de fama, que era o que muita gente queria, fosse onde fosse. Aliás, nos bombeiros e nos outros lados.
Nem sempre fora assim. Ou se calhar fora. Não havia era tanta televisão nem sequer se avaliava a competência de cada um em função dos minutos em que se aparecia para todos verem.
Hoje, quando se calhar era precisa, a televisão não estava ali. Haveria de estar. Mais do que não fosse para retratar rostos. Só rostos!
Que giro seria poder haver uma câmara que lhes perscrutasse as almas. Quantos não haveriam de estar ali a pensar se valeria a pena correr ao toque da sirene do quartel para acorrer ao desconhecido - sendo que o desconhecido, com toque de sirene, veste-se de perigo; outros haveriam de pensar que antes àquele, que hoje estava de napperon a tapar-lhe o rosto, que a eles próprios. Haveria de chorar-se algumas lágrimas, é verdade, mas o tempo encarregar-se-ia do resto. E o resto é apagar a memória. Ainda por cima, o rapaz quase que ainda tinha gás no corpo em ebulição a fazer o trabalho que lhe competia de o matar por dentro, e já chegavam aos ouvidos do Carlos palavras que lhe falavam nos direitos do seguro, nas dificuldades que o Estado tem em fazer cumprir as suas obrigações para com quem perde a vida a servi-lo. Está bom de ver que a vida, no dia seguinte, haveria de ter outro sentido. E que, se preciso fosse, outros estariam dispostos, sem o saber, a espalhar-se numa qualquer curva feita mais depressa em carros que nunca chegam a compensar o desenho que têm para o socorro com o facto de serem desengonçados para levar gente. São os melhores do concelho, dizia-se. Que conduzam com cuidado, recomendavam outros. Os que nunca andavam neles. Mas os bombeiros, por muito nobres e sãos, tinham destas coisas. De achar que, como diz o povo, "a galinha da vizinha é sempre melhor que a minha". Por isso se via, com desplante, corpos de bombeiros de cidade com material do melhor para combater fogos no campo, e corpos de bombeiros do mundo rural com material muito debilitado para andar em estradas que tardavam em bater-lhes na área de actuação. Outra: área de actuação.
Os limites da intervenção faziam-se (não sei se ainda se faz) com mais rigor do que as linhas mestras que desenharam cada país - tenha sido por decisão de decreto, tenha sido por conquista guerreira. Os países, sobretudo os que conversam ao estalo, confundem fronteiras. Os bombeiros não.

É fogo, é acidente?
Salta-se para a zona de intervenção do vizinho; é trabalho menor, de acartar um AVC de 70 e muitos, uma porta para abrir, gás para fechar ou inundação de vão de escada, "pois minha senhora tem de ligar para a corporação tal que isso é zona deles!..." Ainda há destes caprichos, pois há.

Naquele dia o puto tinha andado no carro melhor, mais moderno e desengonçado para levar gente. Naquele, e noutro dia. E noutro. E noutro. Tinha andado nele vezes sem conta desde que ainda de cueiros entrou pela primeira vez no quartel de bombeiros da terra. Era dos que entrara nos bombeiros por "deformação genética". Ou seja: atrás do pai. O primeiro estalo levado a sério, dado de mão aberta pela mãe, tinha sido "por causa" dos bombeiros.
- Hoje não há escola - disse à mãe depois de ter premeditado que haveria de ver os passos da formatura em treino para a festa de aniversário. Além de que, muito mais interessante do que o aprumo do "esquerdo-direito-hop-dois, esquerdo-direito" gritado a preceito pelo chefe da fanfarra, o grupo de caixas, timbalões, bombo e clarins que ritmava o compasso ao som de marchas "militares", o treino das operações de salvamento feito com recurso a escadas de vários efeitos e feitios na casa-escola do quartel, dava outro colorido à mobilização para o dia de aniversário que chegava naquele mês de Novembro.
- Não há escola? Porquê? - questionou a mãe já indignada por uma escola privada, daquelas que se pagam todos os meses, se dar ao luxo de fazer gazeta sem que tivesse o bom senso de avisar - sendo certo que não haveria, uma vez chegada a hora de prestar contas à mensalidade, de fazer o desconto do dia que, dizia-lhe agora o filho, a escola tinha fechado para preparar os "teatrinhos" do mês seguinte.
- Vão começar os primeiros treinos para a festa de Natal e precisam das salas de aula. E os professores vão estudar o espectáculo... - mentiu.
- Vou ver os bombeiros - afirmou, dando corpo, forma e razão para a mentira.
A mãe só soube que era mentira no dia seguinte, o tal dia de "não há escola" quando viu chegar a casa, de sacola a tiracolo, a vizinha de baixo, da mesma idade e companheira do filho.
- Donde vens Bertinha? - perguntou-lhe.
- Da escola - respondeu a miúda.
- Mas o Ricardo disse que não havia escola... - retorquiu.
- Houve, houve. Ele é que não foi - despachou a miúda.
Varreu-se-lhe a condescendência. Colocou um casaco sobre os ombros e saiu direcção aos bombeiros. Nem deu tempo a nada. Enquanto os bombeiros subiam rápido ao terceiro andar da casa-escola para efectuar um salvamento por manga, um "túnel" de lona que queimava os braços se não houvesse cuidado ao deslizar por ele, ele estava com... um estalo na cara. E outro, e mais outro, até conseguir seguir até casa da avó, umas boas centenas de metros de calçada abaixo, sempre dez passos à frente da mãe que não se cansava de dizer:
- Maroto, que me mentiu! Grande maroto, que me mentiu!
No dia seguinte, voltou aos bombeiros pelas mãos do pai e não se livrou da chacota dos presentes que haviam assistido a tudo no dia anterior.
- Então, ontem almoçaste fava comprida? - questionava um mais brincalhão numa clara alusão aos estalos dados sem vergonha mas recebidos com muita.
- Deixa o miúdo - recomendava o pai, adivinhando que se os bombeiros podiam trazer trauma tamanho como aquele que assume um dos primeiros estalos, estaria bom de ver que, no futuro, falar do quartel haveria de significar... "fava comprida" e, cumulativamente, uma falta de vontade em lá voltar. E, para o bem e para o mal, nas terras mais pequenas, ser bombeiro podia significar o garante de afastamento dos "maus caminhos".
- Enquanto está aqui, está sossegado - defendia o pai, também bombeiro vai para duas dezenas de anos.
Era assim, de facto. Ainda é assim, porventura. A ida para os bombeiros, a ideia de dar o corpo ao manifesto ao serviço dos outros sem receber nada em troca, está nos antípodas do mau comportamento social. Valha isso para manter viva a chama do voluntariado em Portugal.
Ainda assim, para quem tinha quase estreado a sua ida aos bombeiros com um estalo logo de seguida, não parecia seguro que o miúdo quisesse seguir as pisadas do pai. Mas segui. Acompanhou dezenas de histórias, passou por elas sem mácula sem uma ponta de medo ou sentimento e cresceu na lufa-lufa de ver o pai sair a meio da noite a vestir-se à pressa sobre as calças do pijama e a chegar de tronco nu vezes sem conta ao quartel porque ser primeiro ou dos primeiros, podia significar apanhar o primeiro carro que seguia para o fogo. E, com um bocado de sorte, sendo o primeiro podia ser o mais antigo e isso dava-lhe condições de chefe. Até aqui a velhice era um posto. E ser chefe, num carro de bombeiros, quer dizer que se manda nos outros. Era efémero, é verdade, mas era-se chefe. Até outro mais velho aparecer. Ou, ainda que não fosse chefe, tinha missão maior, no palco de operações, conduzi-las a bom termo. E mesmo que não fizesse mais do que a intuição mandava, saía dali de consciência de que fizera o que tinha de ser feito. Naquele tempo ser o mais velho e mais afoito garantia presença na agulheta num combate desigual para liquidar o fogo. È a alma guerreira desta gente ou disparate, para muitos, que os leva a enfrentar o animal de formas disformes e de manhas tamanhas que nunca se sabe se vem de frente, se investe de lado.
"Eu quero é matar o gajo!" - dizia-se defronte para o fogo, segurando a agulheta com a pressão da bomba quase ao máximo, o que fazia andar "à reboleta" (para usar a expressão que um deles tornou popular quando rebolou morro abaixo em função do fraco domínio que teve em dominar a agulheta).
Por isso, cresceu a ouvir a sirene dos bombeiros, a ouvir histórias sem fim de episódios burlescos, outros mais sérios. Histórias de vida que só faziam história porque mexiam com os sentimentos dos outros. Fossem histórias de fim feliz ou de fim.
Ponto final.

De Morte!...

Era de morte, desta vez, que se falava ali. O Ricardo estava deitado com a cara de rapazinho que sempre tivera. Pensa-se que era assim. Por respeito à figura dos 19 anos e para que se recorde a beleza que tinha e não o estrago do acidente, o caixão mantinha-se aberto mas com o rosto tapado. A seu lado, a mãe, de preto vestida, tinha a cara encarnada de tanto chorar mas a cabeça não parecia ali. O Pai, o pai verdadeiro, ora passava pelo salão nobre, ora descia as escadas até ao parque de viaturas, ora se perdia no bar nas mãos de uma "menina" - epíteto usado brejeiramente para designar as cervejas pequenas, as "minis".
O Carlos, pai dos últimos anos, enchia o corpo de mágoa. Enchia até rebentar num choro parvo e descontrolado que os outros haveriam de julgar ser bom para "deixar libertar sentimentos".
Enquanto soluçava parvamente mais depressa do que o ritmo de palmadas nas costas que os velhos camaradas lhe davam presume-se que para lhe transmitir ânimo, as histórias de vida de um corpo de bombeiros desfiavam ao ritmo de muitas por minuto. Tantas quantos os grupos que se juntavam pelo imenso espaço daquela que era a obra máxima da terra - o quartel dos bombeiros. De há muito que era assim: os bombeiros tinham por hábito encontrar-se e cruzar experiências, ora em festas, ora em funerais. Nos últimos tempos, muito por obra e graça da Confederação dos Bombeiros, a Liga, era possível encontrar outros motivos que os levassem a reunir. Mas as festas de aniversário, com autênticas romarias em busca do pernil de frango no beberete, ou os funerais, eram, ainda, o ponto mais alto da reunião. E palanquete maior para passar experiências.
Lembras-te?

in: texto transcrito do livro Fénix - Histórias de Vida (e morte) dos Bombeiros Portugueses
de autoria Paulo Barbosa

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Diário de um Bombeiro às 12:56


Mais sobre mim

foto do autor


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

Pesquisar no Blog  

calendário

Março 2013

D S T Q Q S S
12
3456789
10111213141516
17181920212223
24252627282930
31




Tags

mais tags