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diariobombeiro



Terça-feira, 29.03.11

1ª História de Vida (e Morte) dos Bombeiros Portugueses

Carlos era bombeiro desde os 22 anos, já tinha mais de 60 em cima e continuava bombeiro. Com o crachá de Ouro da Liga dos Bombeiros Portugueses, lembro-me de o ver "enchouriçado" numa farda de gala - que fazia gala em nunca vestir - para receber a mais alta insígnia dos bombeiros portugueses numa festa de aniversário do corpo de bombeiros a que sempre pertenceu. Tinha aversão a essas práticas de ostentação, ainda que só lhe pedissem, naquela altura, que esticasse o peito para receber o crachá - uma estrela dourada que brilhava sempre que qualquer raio de luz assentava os olhos nela e que hoje, deve estar arrumada num qualquer canto da casa sem cuidados de maior. Até porque, com a aversão que tem às festas de gala onde se exibem condecorações do género, não é líquido que saia alguma vez dali. Se calhar, e se for intenção dele ir vestido de gala para o talhão que os bombeiros têm no cemitério, só nessa altura se vai voltar a ver o quão brilhante é a estrela da Liga.
Até que isso aconteça, o mais certo é a estrela de tantas pontas, reluzente, estar presa ainda à farda ou num amontoado de tralha onde se misturam outras medalhas, daquelas que quase todos têm - pequenas fénix de prender aos bivaques, divisas, galões ruços de tanto uso, algodão de polir ainda na caixa por estrear - que a aversão à farda de gala não justifica polimentos -, mosquetões, chaves antigas de cacifos que já não se usam, moedas, canecas secas e sem uso... tralha.
Ainda assim, hoje estava a mirar a condecoração com os olhos marejados e a pensar se alguma vez merecera aquilo. Decerto que não merecia. Afinal, fora por causa dele e de uns tantos como ele que o puto estava ali estendido, tapado com um napperon de renda branca para que não se lhe vissem os sinais que lhe estragavam a cara. E, ainda que assim não fosse, não haveriam de faltar, na formatura ao lado, histórias de marcas estampadas no rosto e no corpo de dezenas de bombeiros sem mácula. Era destes que a história gostava. Eram estes, os sem mácula, que apareciam - agora cada vez mais -  nas televisões e nos jornais. Fosse por um parto bem sucedido, fosse por um salvamento na estrada, fosse, entendia ele e estava velho, porque qualquer coisa servia para aparecer na televisão e nos jornais. Para, num grau de histeria desenfreada, correr a avisar a família e os amigos para verem o Jornal da Noite, da SIC, o Jornal Nacional, da TVI, ou o Telejornal, da RTP. A preferência pelo canal variava consoante fosse aquele que lá estivera horas antes a estorvar no socorro, mas a garantir meia dúzia de minutos de fama, que era o que muita gente queria, fosse onde fosse. Aliás, nos bombeiros e nos outros lados.
Nem sempre fora assim. Ou se calhar fora. Não havia era tanta televisão nem sequer se avaliava a competência de cada um em função dos minutos em que se aparecia para todos verem.
Hoje, quando se calhar era precisa, a televisão não estava ali. Haveria de estar. Mais do que não fosse para retratar rostos. Só rostos!
Que giro seria poder haver uma câmara que lhes perscrutasse as almas. Quantos não haveriam de estar ali a pensar se valeria a pena correr ao toque da sirene do quartel para acorrer ao desconhecido - sendo que o desconhecido, com toque de sirene, veste-se de perigo; outros haveriam de pensar que antes àquele, que hoje estava de napperon a tapar-lhe o rosto, que a eles próprios. Haveria de chorar-se algumas lágrimas, é verdade, mas o tempo encarregar-se-ia do resto. E o resto é apagar a memória. Ainda por cima, o rapaz quase que ainda tinha gás no corpo em ebulição a fazer o trabalho que lhe competia de o matar por dentro, e já chegavam aos ouvidos do Carlos palavras que lhe falavam nos direitos do seguro, nas dificuldades que o Estado tem em fazer cumprir as suas obrigações para com quem perde a vida a servi-lo. Está bom de ver que a vida, no dia seguinte, haveria de ter outro sentido. E que, se preciso fosse, outros estariam dispostos, sem o saber, a espalhar-se numa qualquer curva feita mais depressa em carros que nunca chegam a compensar o desenho que têm para o socorro com o facto de serem desengonçados para levar gente. São os melhores do concelho, dizia-se. Que conduzam com cuidado, recomendavam outros. Os que nunca andavam neles. Mas os bombeiros, por muito nobres e sãos, tinham destas coisas. De achar que, como diz o povo, "a galinha da vizinha é sempre melhor que a minha". Por isso se via, com desplante, corpos de bombeiros de cidade com material do melhor para combater fogos no campo, e corpos de bombeiros do mundo rural com material muito debilitado para andar em estradas que tardavam em bater-lhes na área de actuação. Outra: área de actuação.
Os limites da intervenção faziam-se (não sei se ainda se faz) com mais rigor do que as linhas mestras que desenharam cada país - tenha sido por decisão de decreto, tenha sido por conquista guerreira. Os países, sobretudo os que conversam ao estalo, confundem fronteiras. Os bombeiros não.

É fogo, é acidente?
Salta-se para a zona de intervenção do vizinho; é trabalho menor, de acartar um AVC de 70 e muitos, uma porta para abrir, gás para fechar ou inundação de vão de escada, "pois minha senhora tem de ligar para a corporação tal que isso é zona deles!..." Ainda há destes caprichos, pois há.

Naquele dia o puto tinha andado no carro melhor, mais moderno e desengonçado para levar gente. Naquele, e noutro dia. E noutro. E noutro. Tinha andado nele vezes sem conta desde que ainda de cueiros entrou pela primeira vez no quartel de bombeiros da terra. Era dos que entrara nos bombeiros por "deformação genética". Ou seja: atrás do pai. O primeiro estalo levado a sério, dado de mão aberta pela mãe, tinha sido "por causa" dos bombeiros.
- Hoje não há escola - disse à mãe depois de ter premeditado que haveria de ver os passos da formatura em treino para a festa de aniversário. Além de que, muito mais interessante do que o aprumo do "esquerdo-direito-hop-dois, esquerdo-direito" gritado a preceito pelo chefe da fanfarra, o grupo de caixas, timbalões, bombo e clarins que ritmava o compasso ao som de marchas "militares", o treino das operações de salvamento feito com recurso a escadas de vários efeitos e feitios na casa-escola do quartel, dava outro colorido à mobilização para o dia de aniversário que chegava naquele mês de Novembro.
- Não há escola? Porquê? - questionou a mãe já indignada por uma escola privada, daquelas que se pagam todos os meses, se dar ao luxo de fazer gazeta sem que tivesse o bom senso de avisar - sendo certo que não haveria, uma vez chegada a hora de prestar contas à mensalidade, de fazer o desconto do dia que, dizia-lhe agora o filho, a escola tinha fechado para preparar os "teatrinhos" do mês seguinte.
- Vão começar os primeiros treinos para a festa de Natal e precisam das salas de aula. E os professores vão estudar o espectáculo... - mentiu.
- Vou ver os bombeiros - afirmou, dando corpo, forma e razão para a mentira.
A mãe só soube que era mentira no dia seguinte, o tal dia de "não há escola" quando viu chegar a casa, de sacola a tiracolo, a vizinha de baixo, da mesma idade e companheira do filho.
- Donde vens Bertinha? - perguntou-lhe.
- Da escola - respondeu a miúda.
- Mas o Ricardo disse que não havia escola... - retorquiu.
- Houve, houve. Ele é que não foi - despachou a miúda.
Varreu-se-lhe a condescendência. Colocou um casaco sobre os ombros e saiu direcção aos bombeiros. Nem deu tempo a nada. Enquanto os bombeiros subiam rápido ao terceiro andar da casa-escola para efectuar um salvamento por manga, um "túnel" de lona que queimava os braços se não houvesse cuidado ao deslizar por ele, ele estava com... um estalo na cara. E outro, e mais outro, até conseguir seguir até casa da avó, umas boas centenas de metros de calçada abaixo, sempre dez passos à frente da mãe que não se cansava de dizer:
- Maroto, que me mentiu! Grande maroto, que me mentiu!
No dia seguinte, voltou aos bombeiros pelas mãos do pai e não se livrou da chacota dos presentes que haviam assistido a tudo no dia anterior.
- Então, ontem almoçaste fava comprida? - questionava um mais brincalhão numa clara alusão aos estalos dados sem vergonha mas recebidos com muita.
- Deixa o miúdo - recomendava o pai, adivinhando que se os bombeiros podiam trazer trauma tamanho como aquele que assume um dos primeiros estalos, estaria bom de ver que, no futuro, falar do quartel haveria de significar... "fava comprida" e, cumulativamente, uma falta de vontade em lá voltar. E, para o bem e para o mal, nas terras mais pequenas, ser bombeiro podia significar o garante de afastamento dos "maus caminhos".
- Enquanto está aqui, está sossegado - defendia o pai, também bombeiro vai para duas dezenas de anos.
Era assim, de facto. Ainda é assim, porventura. A ida para os bombeiros, a ideia de dar o corpo ao manifesto ao serviço dos outros sem receber nada em troca, está nos antípodas do mau comportamento social. Valha isso para manter viva a chama do voluntariado em Portugal.
Ainda assim, para quem tinha quase estreado a sua ida aos bombeiros com um estalo logo de seguida, não parecia seguro que o miúdo quisesse seguir as pisadas do pai. Mas segui. Acompanhou dezenas de histórias, passou por elas sem mácula sem uma ponta de medo ou sentimento e cresceu na lufa-lufa de ver o pai sair a meio da noite a vestir-se à pressa sobre as calças do pijama e a chegar de tronco nu vezes sem conta ao quartel porque ser primeiro ou dos primeiros, podia significar apanhar o primeiro carro que seguia para o fogo. E, com um bocado de sorte, sendo o primeiro podia ser o mais antigo e isso dava-lhe condições de chefe. Até aqui a velhice era um posto. E ser chefe, num carro de bombeiros, quer dizer que se manda nos outros. Era efémero, é verdade, mas era-se chefe. Até outro mais velho aparecer. Ou, ainda que não fosse chefe, tinha missão maior, no palco de operações, conduzi-las a bom termo. E mesmo que não fizesse mais do que a intuição mandava, saía dali de consciência de que fizera o que tinha de ser feito. Naquele tempo ser o mais velho e mais afoito garantia presença na agulheta num combate desigual para liquidar o fogo. È a alma guerreira desta gente ou disparate, para muitos, que os leva a enfrentar o animal de formas disformes e de manhas tamanhas que nunca se sabe se vem de frente, se investe de lado.
"Eu quero é matar o gajo!" - dizia-se defronte para o fogo, segurando a agulheta com a pressão da bomba quase ao máximo, o que fazia andar "à reboleta" (para usar a expressão que um deles tornou popular quando rebolou morro abaixo em função do fraco domínio que teve em dominar a agulheta).
Por isso, cresceu a ouvir a sirene dos bombeiros, a ouvir histórias sem fim de episódios burlescos, outros mais sérios. Histórias de vida que só faziam história porque mexiam com os sentimentos dos outros. Fossem histórias de fim feliz ou de fim.
Ponto final.

De Morte!...

Era de morte, desta vez, que se falava ali. O Ricardo estava deitado com a cara de rapazinho que sempre tivera. Pensa-se que era assim. Por respeito à figura dos 19 anos e para que se recorde a beleza que tinha e não o estrago do acidente, o caixão mantinha-se aberto mas com o rosto tapado. A seu lado, a mãe, de preto vestida, tinha a cara encarnada de tanto chorar mas a cabeça não parecia ali. O Pai, o pai verdadeiro, ora passava pelo salão nobre, ora descia as escadas até ao parque de viaturas, ora se perdia no bar nas mãos de uma "menina" - epíteto usado brejeiramente para designar as cervejas pequenas, as "minis".
O Carlos, pai dos últimos anos, enchia o corpo de mágoa. Enchia até rebentar num choro parvo e descontrolado que os outros haveriam de julgar ser bom para "deixar libertar sentimentos".
Enquanto soluçava parvamente mais depressa do que o ritmo de palmadas nas costas que os velhos camaradas lhe davam presume-se que para lhe transmitir ânimo, as histórias de vida de um corpo de bombeiros desfiavam ao ritmo de muitas por minuto. Tantas quantos os grupos que se juntavam pelo imenso espaço daquela que era a obra máxima da terra - o quartel dos bombeiros. De há muito que era assim: os bombeiros tinham por hábito encontrar-se e cruzar experiências, ora em festas, ora em funerais. Nos últimos tempos, muito por obra e graça da Confederação dos Bombeiros, a Liga, era possível encontrar outros motivos que os levassem a reunir. Mas as festas de aniversário, com autênticas romarias em busca do pernil de frango no beberete, ou os funerais, eram, ainda, o ponto mais alto da reunião. E palanquete maior para passar experiências.
Lembras-te?

in: texto transcrito do livro Fénix - Histórias de Vida (e morte) dos Bombeiros Portugueses
de autoria Paulo Barbosa

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por Diário de um Bombeiro às 12:56



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