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diariobombeiro



Terça-feira, 29.03.11

2ª História de Vida (e Morte) dos Bombeiros Portugueses

É bem verdade que umas quantas vezes a saída para o socorro era propositadamente desenfreada. É certo e sabido que quem telefona para os bombeiros acha sempre que é urgente. Mais: a nossa urgência é sempre maior que a do outro - nem que o outro esteja, de facto, a viver o maior dos dramas. Depois, há que ter em conta que o nosso tempo, o dos aflitos que telefonam, nunca há-de ser o tempo dos bombeiros. E por muito depressa, por muito eficaz, por muito pronto e recto, o socorro há-de ser sempre tardio. Sobretudo, se as coisas correm para o torto. Por isso, ainda hoje, não é raro ver-se (ler-se) críticas que apontam para o facto do socorro ter... demorado muito.

Ontem fora assim...

Do largo onde estrategicamente estava montado o quartel dos bombeiros à Rua Almeida Garrett, para onde ia agora a correria dos carros de fogo e onde, dizia-se, a casa ardia com crianças lá fechadas, não distavam mais de oitocentos metros. O que, em bom rigor, não significava que fosse... já ali. O trânsito da grande cidade tinha armadilhas próprias para surpreender os carros que, para serem eficazes, eram também grandes. Depois, haveria que contar com os imponderáveis que iam do mau estacionamento, à velhinha na passadeira, ou, como foi o caso, àquele eléctrico que, seguindo pachorrentamente nos trilhos, desenhados e construídos no chão, não podia desviar a sua marcha. Bem que as pontes americanas com luzes de cor azul e alarmes cada vez mais electronicamente estridentes despertavam para a iminência do socorro. Bem que podiam gritar, ali, de pulmões abertos, "ti-nó-ni”, deixem passar", que o eléctrico só se desviaria quando os carris desenhassem no chão esse desvio.
Antes de dobrar a esquina de acesso à rua onde se vivia um bocado de inferno, ele já mostrava um pedacinho por cima dos telhados amarelecidos dos prédios. Fumo negro saía em golfadas como que a mostrar o que era bom, para aquela guarnição, estar preparada para o pior. O Carlos olhou para cima, viu o fumo, mas fez de conta que não viu... preferiu ligar para o quartel, via rádio, e antes mesmo de se inteirar do quadro que tinha pela frente, mandou avançar duas ambulâncias e um carro com mais água. Ainda deu um recado do género "liga para a loja a dizer que não vou trabalhar". Era um hábito: pôr o trabalho para trás dando benefício aos bombeiros.
Entrados na rua do fogo, não sem que antes o carro tivesse dado um ligeiro safanão de traseira passando a escassos centímetros do pára-choques de um velho Ford estacionado à saída da curva, o espectáculo do costume estava à vista. Uma mulher, de robe vestida, ora punha as mãos na cabeça, ora apontava para as águas furtadas, ora se abraçava ao pescoço do vizinho... em pânico.
- Tanto tempo e os miúdos lá dentro. Estão mortos, é o que estão. Tanto tempo - exclamava.
É mentira. Não era tanto tempo assim. Entre a chamada de socorro e a chegada dos primeiros carros não teriam passado, bem contados, mais de quatro minutos. Uma eternidade para quem está à espera.
O primeiro carro parou um pouco mais à frente da porta de acesso ao prédio de onde saía o fumo, de maneira a que a auto-escadas ficasse de frente para a fachada principal do prédio.
É um norma quase elementar.
E, aí, há que desligar do pedaço de mundo que rodeia o palco das operações. Apareceu o dono da loja de mercearia da zona a dizer que aquilo é quase "um armazém de bilhas de gás", um taxista que nem sequer sabia ao certo o que se passava sempre foi adiantando que o melhor era nem sequer tentar as escadas, porque "aquilo está cheio de fumo" e a mulher, em pânico, mãos na cabeça, cabeça no ombro do vizinho, já não dizia coisa com coisa.
Falava em crianças, em comida ao lume, em napperons ardidos, em esquentadores. Falava quase uma linguagem imperceptível, tanta era a informação que pretendia dar.
É neste momentos, de maior confusão, que importa ter líderes. Ainda que pareça pouco razoável não dar atenção a quem está em pânico, o Carlos resolveu as coisas de duas "penadas": mandou calar a mulher, entregando-a aos cuidados de uma vizinha - até vir a ambulância, disse - e ordenou que dois bombeiros subissem escadas acima, de máscaras na fuça e agulhetas, para "dar cabo dele".
- Com cuidado. Vejam lá os putos. Que se lixe o fogo. Vejam lá os putos - recomendou.
À pressa, ainda meteu um walkie-talkie no bolso do bombeiros que ia seguir escadas acima. Depois, mandou arvorar a escada até à janela das águas-furtadas e meteu-se nela até lá acima. Já lhe doíam os rins - não sabe se da idade se dos nervos - mas subiu as escadas, degrau a degrau, respeitando aquilo que empiricamente já tinha na cabeça, coordenando o pé direito no degrau com o braço esquerdo um pouco acima da cabeça, o braço direito um pouco acima da cabeça com o pé esquerdo no degrau. Subia mais depressa e em equilíbrio.
- Já chegaram? - perguntou pelo rádio portátil.
- Estamos a chegar - disse o bombeiro que, estranhando a voz que lhe vinha dos fundilhos das calças, cedo percebeu que fizera asneira ao esquecer-se de meter o rádio à sacola quando arrancou a mangueira do carretel do pronto-socorro.
- Estamos... a... chegar - repetiu, cansado.
O Carlos riu-se para dentro a pensar que a subida das escadas interiores a pé, com vinte quilos de material às costas - machado, capacete, mangueira, garrafa de ar comprimido e umas botas de quilo e meio de borracha calçadas -, haveria de cobrar os pulmões a saga de dois maços de tabaco por dia.
- Está demasiado fumo. Não se vê nada. Vai a pontapé? - questionou o bombeiro.
- Vai como der jeito - respondeu-lhe o chefe sem pensar, sequer, que todos os dias, em dias de instrução, avisava para os cuidados a ter com o arrombamento de áreas onde o fogo se estendia sozinho. Estava nos livros, vira-se nos filmes, que uma entrada repentina de oxigénio podia acordar o fogo e dar-lhe tamanho e violência diferente. E perigosa.
- Foi a pontapé, mas não é aqui - respondeu-lhe o bombeiro depois de meter uma porta de madeira dentro com biqueiro bem junto à maçaneta da entrada.
- Aqui não há nada - confirmou, depois de entrar hall adentro na casa vizinha do fogo.
- Vê lá se fugiu... - gozou irritado o Carlos. Estava ele quase a chegar mais depressa, com sessenta anos bem medidos a subir por cinco lanços de escadas onde só o seu corpo cabia, que os seus subordinados, em escadas normais de prédio.
- Já entrámos - ouviu do outro lado do rádio.
- Já entrámos mas o fumo só vem da cozinha. Onde estão os putos? - perguntou o bombeiro para o colega, ao mesmo tempo que via que a razão de tanto fumo era explicada pelo facto de uma trouxa de roupa estar o fogo sem mostrar lume.
O que acontecera percebia-se pelo quadro à vista: pouco a pouco a cozinha fora lambida pelas labaredas que tinham saído de uma frigideira com óleo que a dona da casa deixara queimar demasiado enquanto se distraía, lágrima ao canto olho, com o enredo da telenovela depois de almoço. Ainda estava a dar a novela. Pelo menos, a música que vinha da sala era a do genérico de uma.
Os bombeiros entraram na casa onde estava o fumo, a trouxa de roupa, a frigideira queimada, a televisão ligada e... os putos.
Já são três. O chefe de equipa já se tinha juntado a eles. O fumo tinha tomado conta da casa e era difícil perceber o que era o quê no meio da confusão. Pelo caminho, na lufa-lufa de encontrar os miúdos, um deles deu uma joelhada nos braços de um cadeirão que o fez largar o "dasse!". O colega riu e, tacteando, de joelhos, aquilo que se assemelhava ao desenho de uma cama, procurou por baixo, não fossem as crianças terem-se refugiado ali. Outro (o mais velho do grupo) procura por cima e dá com uma.
- Tá aqui uma! Tá aqui uma! - disse, mantendo premido o botão do rádio durante tanto tempo que, ainda a assomar à janela pelo lado de fora, o Carlos ainda ouviu outra voz dizer:
- Tá aqui outra!
De joelhos, o bombeiro que fazia a busca debaixo da cama estendeu os braços e agarrou uma das crianças, levando-a para longe daquele fumo que iria deixá-la respirar por muito mais tempo. A outra criança foi recolhida pelo chefe que tinha dado com elas, e uma terceira pelo outro bombeiro que participava na busca. Eram três ao todo. A mais velha tinha quatro anos, a do meio dois e a mais pequenina, se tinha um anito era muito.
Todas elas tossiam bastante.
- Comeram bastante fumo - comentou para os colegas.
- Já passou não já? - falava agora para um dos miúdos, o mais velhinho.
O miúdo só respondeu um monossílabo:
- Vó!
- A avó. Vamos à avó - disse o bombeiro, ao mesmo tempo que sentia os bracitos enrolados à volta do pescoço e o miúdo escachado, muito apertado de encontro ao seu peito.
Não há medalha como esta, pensou. Não pode haver!
As outras eram demasiado pequenas para terem a noção do que se tinha passado.
Apareceu no local o INEM que examinou as crianças; a Protecção Civil que ficou a tratar do realojamento e da guarda das crianças; apareceu a Polícia.
Só não apareceu a avó das crianças que tinha ido na ambulância, já que desnorteara numa ideia fixa de que tinha morto os miúdos por causa de se esquecer da frigideira ao lume enquanto via a novela.
- Raio da velha - diziam uns.
- Raio da novela - diziam outros...
Para acrescentar:
- Isso é de um vício tamanho que a minha até se esquece do almoço. Raio da novela...
Entregues os miúdos, extinto o pedaço de fogo que moía a roupa - extinto na rua já que a trouxa foi trazida ao "colo" até cá fora, o trabalho dos bombeiros estava feito. Ainda que lhes apetecesse, não estavam ali para julgar. Estavam para socorrer e foi isso que fizeram. Era hora de arrumar o material e regressar ao quartel. Já sem pressas, sem sirenes, sem os nervos do eléctrico nem os aselhas que não sabem adequar a condução ao barulho de um alarme deles.
Nunca lhes foi transmitido por parte das hierarquias superiores nenhuma palavra de conforto e de que tinham executado um bom trabalho. Não tiveram louvores nem medalhas. A única pessoa que se lembrou deles foi a dona da habitação, a quem eles, por engano, arrombaram a porta. Grata pelo trabalho que os bombeiros tinham feito e por pensar que estes arrombaram a porta para ver se se encontrava alguém dentro da casa, esta senhora fez questão de deixar uma simbólica importância no quartel dos bombeiros, em jeito de agradecimento, para aqueles que lhe deram cabo da porta, no intuito de fazer um bom trabalho.
Todos eles continuam ao serviço e ainda bem.
A verdade é que agora, ali, haveriam de ser muitos os que perguntavam a sim mesmos se valeria a pena. Afinal, a falta de agradecimento era agraciamento garantido. (...) o tempo haveria de curar a ferida de ver o miúdo rebentado aos 19 anos, namoro firmado e casamento aprazado para daí a não se sabe quanto tempo. O tempo cura tudo e não haveria de faltar muito para que, depois de arrumada a bandeira da associação erguida a meia-haste no pau mais à direita dos três que davam as boas-vindas a quem chegava ao quartel, as flores murchassem na campa rasa do talhão privativo que havia lá no cemitério da terra (...)
Era por isso que, embora a frieza da análise magoasse, haveria quem julgasse não ser merecido chorar sobre leite derramado. Pôr as glândulas lacrimais ao serviço daquela morte haveria de soar a lamechice para muitos. E, em boa verdade, para além dos que lhe sentiam o cheiro todos os dias, haveriam de ser poucos os que lhe guardavam espaço no pedaço de memória para futuro.
O que mais doía ao Carlos era saber que ele haveria de ser o primeiro a dar o exemplo nesta insensibilidade que, sendo de todos, haveria de ser mais notada nele. è certo e sabido que haveria de alfinetar um "fumo" negro no braço e que com ele haveria de partilhar o dia-a-dia durante não mais de dois ou três meses. Não é certo que se deixasse abalar nas lides futuras sempre que fosse chamado aos bombeiros, por estar preso à má recordação da morte do puto.
O chefe já se tinha habituado a ver cenas destas e lidara com elas sempre assim. Já perdera amigos desta maneira. Já vira um colega enfiar-se literalmente na grelha frontal de um carro quando vinha desenfreado de casa, de mota, a caminho do toque da sirene e vira-o, poucas horas depois, finar-se em S. José por força de tão mau trato. E já vira um outro deixar-se a contragosto ir na enxurrada de umas cheias maiores até se perder de vista nas águas do Tejo - e, ainda que hoje herói no quartel, com romagem garantida em tempo de aniversário e lápide a marcar o nome de rua, não consta que fosse mais do que simples recordação de "morto em combate". Estranha forma de viver a morte, esta: tanto choro num dia; quanta amnésia páginas tantas passadas.
Se de drama se trata, um quartel de bombeiros vive a morte dos seus como vive a morte dos outros. (...) A rotina do sofrimento dos outros já parecia não fazer-lhe mossa. E, se bem que não fosse dado a grandes poesias, ainda se perdeu no olhar para um pedaço dela, num papel amarrotado. E onde se dizia assim:

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo no chão, apodrecidos.
       Eugénio de Andrade

Era assim que ele se sentia neste momento. Apodrecido. Ainda que a condição do que se deitava lá em cima no salão nobre fosse mais própria desse caminho da decomposição, ele estava marcado por dentro. Moído. Não dizia coisa com coisa nem fazia coisa com coisa. A morte batera-lhe à porta, desta vez, sorrateira numa chamada para o telemóvel a dizer-lhe que o puto se finara. E, por muito rijo, por muita morte, por muita falta exterior de sentimento, esta dera-lhe forte. Quase a levá-lo, também.

fonte: texto transcrito do livro Fénix - Histórias de Vida (e morte) dos Bombeiros Portugueses
de autoria Paulo Barbosa

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por Diário de um Bombeiro às 16:18



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