Jornal "FOGO E PAZ" ( já extinto - propriedade dos BV Trafaria)
Por RIBEIRO NUNES (anos 70)
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Há bastantes anos, talves uns 30, um velho e saudoso Amigo, Carlos Queirós, que viveu em Oeiras, contou-me um episódio, que vou tentar reproduzir, o mais fielmente:
Numa modesta casa que se encontra nas estreitas e sinuosas ruas da histórica Vila de Oeiras, morava uma mulher do povo, designação esta que se dá a quem na craveira da vida, nunca atinge o grau que lhe permita viver numa relativa mediania.
Chamavam-lhe a «Senhora Maria José». Mas, dentro do seu somenos valor social possoia um brazão que, sem escudos ou armas, é certo, tinha contudo a nobreza própria das almas sãs e dos caracteres íntegros e honestos.
Maria José era viúva. Seu marido morrera tuberculoso, e ela passara a viver só com seu filho António, um rapaz inteligente e estudioso, para quem iam todos os desvelos que só uma mãe sabe prodigalizar, António correspondia com atenção e respeito de um bom filho.
Um dia, António por ter sido aumentado na féria, disse-lhe apertando as mãos: «Minha boa mãe, ouça o que lhe vou dizer: Eu, muito desejava ser o que o meu pai foi, e por isso pedia-lhe licença, para assentar praça como voluntario, na mesma corporação, assegurando-lhe que saberei cumprir o meu dever».
- Olha meu filho, eu não te quero contrariar, tanto que evocas o que teu pai foi, mas quantas vezes ele saio de noite, debaixo de chuvas umas sobre outras, talvez tivesse agravado o seu mal...
- Não, minha boa mãe. Quando um bombeiro sai de casa para salvar outra vida, a Providência está sempre a seu lado!
António entrou para a corporação, onde passou a ser muito estimado pelos seus camaradas e superiores, não só devido às exelentes qualidades de caráter como, também, pelo aprumo de porte e firme acatamento das normas disciplinares.
Pela madrugada de uma noite de grande invernia, trovejando forte e chovendo copiosamente, o sino da terra começou a tocar as badaladas secas e apavorantes, avisadoras de haver fogo na povoação.
Maria José, acordou sobressaltada e, apercebendo-se do que havia, ficou perplexa.- O que fazer, Santo Deus! Se o vou acordar, ele ai vai, como um louco debaixo desta chuva, ficando sei lá por quanto tempo com as roupas encharcadas. Depois, vem-lhe um resfriamento; e foi com estas que o pai morreu...Mas as badaladas seguiam-sa apressadas, como a fazer sentir aos que as ouviam o risco em que podiam estar vidas e haveres.- Não, custe o que custar, não quero que ele deixe de cumprir o seu dever.E chamava: António, António, meu filho, não ouves? Está a tocar a fogo...Já há muito que toca?- Creio que não; mas estáva tão pegada no sono que não sei bem...Então, o António, numa rapidez que só as boas vontades conseguem, equipou-se e, dando um beijo na testa da mãe, corre célere, para o local do sinistro.
A mãe foi para a janela. Parecia que a chuva estava apostada em cair cada vez mais.- Meu Deus, como chove! E não quis levar, ao menos uma camisola mais forte, para lhe resguardar o peito. Sempre a mesma teimosia da gente moça...Maria José, chorando, ajoelha em frente de um quadro da Virgem e reza.- «Senhora, eu bem sei que todos nós devemos mesmo com o maior sacrificio salvar da morte quem estiver em perigo, Eu sei que o Teu Filho sofreu para nos salvar e que, perante o teu sofrimento, deve recolher as minhas lágrimas. Mas, Senhora, eu tambem sou mãe, por isso te rogo, do fundo da minha alma, a Tua Graça para que a vida do meu filho não corra risco.
Para a pobre mãe, os momentos paraciam gigantes. Com os cotovelos aferados no parapeito da janela, assim esteve horas esquecidas, cativa do seu sofrimento moral. A certa altura, pôde avistar, na escuridão da velha rua, um vulto que caminhava apressado.
- Oh! em que estado tu vens meu filho!...- Que quer minha boa mãe, a «farda de gala» do bombeiro é esta...- Mas o que é isto? Tens a fardeta queimada no peito?- Isto que está vendo são as melhores medalhas do bombeiro; esmaltadas com o fogo da salvação!- Mas tu salvas-te alguém?- Não, minha mãe, apenas ajudei os meus camaradas. E que bravos eles foram! Todos, numa ânsia de amor ao próximo, enfrentavam altaneiramente o perigo, desprezando as chamas que lhes lambiam as carnes.
Nisto, ouvem-se passos na escada. Batem à porta. Maria José, foi abri-la. Era o comandante com alguns bombeiros.
- Viemos aqui - disse o comandante - embora em horas impróprias, por querermos ser dos primeiros a abraçar-te meu rapaz. Foste um herói! Honrras-te a tua farda, dando glória à nossa Corporação. Bem hajas!...
- Mas Sr. Comandante, meu filho disse-me há pouco, que só tinha ajudado os seus camaradas e... por isso não vejo motivo para tanta manifestação de apreço...
- É porque o seu filho é um bravo sem jactância, bastando-lhe a satisfação de cumprir o seu dever...- Conta-me então meu filho o que se passou.- Foi tudo tão simples que bastam poucas palavras para lhe contar: Quando cheguei ao local do fogo, já lá estavam alguns camaradas. O fogo tinha tomado a porta de serventia do prédio. O povo dizia, em alta gritaria, que num quarto ao fundo devia estar um rapaz que ali dormia. Nessa amálgama de vozes perdidas no espaço eu pude distinguir a de uma mulher que de joelhos, suplicava aflita: Salvem o meu querido filho!...
afigurou-se a imagem de meu pai, a quem sempre ouvi estas palavras sagradas para os bombeiros: «Cumpre o teu dever». Voltei-me, então para o meu Comandante e disse-lhe: «Ou se salvam duas vidas ou se perderão juntas»! E lá fui, guiado pelas palavras de meu pai. Depois... não sei o que se passou, de nada me lembronem vale a pena recordar. Mas, se foi muito, pela vida que salvei, isso me basta para a consolidação da minha alma.
- Adeus rapaz. A Corporação saberá cumprir o seu dever, galardoando a tua abnegação.- Não meu Comandante: o que fiz qualquer outro camarada o faria, no meu lugar. Coube-me a vez. E isso foi para mim, melhor galardão que podia receber. Porém, meu Comandante, se me querem ser agradáveis, pedia-lhe, então que no lema da nossa Associação fique gravado, em letras de ouro:
«CUMPRE O TEU DEVER»