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diariobombeiro



Quarta-feira, 09.01.13

Quando morrer vou na “bomba”

Massano Cardoso
Há momentos da vida em que sinto necessidade de confessar alguns pensamentos, ansiedades e esperanças, como se a deusa da liberdade me obrigasse a partilhar com o próximo aquilo que muitos protegem, a intimidade. Deve ser mais o efeito da idade do que qualquer outra coisa. Não interessa.

Em criança ficava seduzido pela “bomba”. Um carro comprido, vermelho, descapotável, com os bombeiros sentados dos dois lados, um deles a tocar a campainha, avisando as pessoas, voando pela estrada. Antes, no quartel, tocava a sirene angustiada com os seus diferentes toques, fogo em pinhal, acidente, fogo em casa, toques que acabei por aprender. Na altura largava-se tudo, as pessoas corriam para o “balcão”, fosse noite ou dia, para saber o que tinha acontecido. O rápido matraquear dos passos nas pedras das ruas denunciava a ansiedade da tragédia, ao mesmo tempo que as janelas se abriam libertando vozes de todos os tipos que interrogavam os passantes, o que é aconteceu, onde é o fogo, onde é o desastre.

Eu próprio me levantava durante a noite e abria a janela para saber qual era a tragédia; se fosse de dia corria como um bombeiro para ir até ao largo do balcão saber o que é que tinha acontecido e ver sair do quartel a viatura, a tal “bomba”, vermelha, descapotável, em que o rugido do motor era submergido pelo toque nervoso da sineta, tic, tic, tic, tic. Um ritual com o qual nasci e vivi durante muitos anos. Ser bombeiro, a par de polícia sinaleiro, foram os meus dois primeiros sonhos de ser alguém na vida. Para mim não havia nada de melhor.

Um dia faleceu um primo num acidente. Era novo, e fui ao funeral. Ao chegar junto da sua casa vi a “bomba”. Fiquei surpreendido. Mas o que é está a fazer aqui a “bomba”, questionei-me. Quando colocaram a urna no carro vermelho, perguntei por que razão ele ia na “bomba” e os outros não. Na altura, apesar dos meus curtos anos, já tinha alguma “experiência” com a morte. Disseram-me que era sócio dos bombeiros e que os sócios tinham direito, quando morressem, a ir na “bomba”. Depois do funeral fui aos bombeiros da terra e pedi para ser sócio. Olharam-me e disseram, está bem, mas tens de pagar vinte e cinco tostões para ser sócio. – Vinte e cinco tostões? Pensei um pouco e respondi: – Está bem, tenho isso e muito mais no meu pequeno cofre. Pronto! Ficas como sócio, mas o teu pai tem de assinar este documento. Agarrei no papel, cheguei a casa e disse: – Agora, se morrer já posso ir na “bomba”. – Na quê? Na “bomba”? Se morreres? Mas tu estás doido ou fazes-te? – Não senhor, agora já sou sócio dos bombeiros, vou pagar vinte e cinco tostões e depois, quando morrer, vou na “bomba”. Olhou-me com um ar estupefacto e assinou o documento. Não disse nem mais uma palavra.

Desde sempre fui seduzido pelos bombeiros, por várias razões, além da que acabei de descrever, uma das mais longínquas lembranças que guardo. Hoje, durante a visita aos Bombeiros Voluntários de Coimbra, a convite do seu presidente, Dr. João Silva, lembrei-me deste episódio. Conheço esta corporação há muitos anos, desde que vim para Coimbra, reconheço o seu papel, a importância da sua localização, o valor do voluntariado e a capacidade de poder ajudar a cidade a encontrar novos rumos, já que esta anda meio perdida há muitos anos. A associação luta com dificuldades, imensas, mas é uma corporação vital, imprescindível em todos os sentidos, não pode morrer, não devemos deixar que tal aconteça, porque tem capacidade de influenciar e ajudar a cidade a orientar-se no futuro, ao manter-se viva naquele espaço, modernizando-se e aglutinando esperanças para que o futuro seja promissor. A atual situação é um mero reflexo do estado a que chegou a cidade de Coimbra, mas também é possível, com a ajuda de alguns cidadãos, manter as suas atividades de forma a dar novos rumos à própria cidade, que bem precisa.

Os Bombeiros Voluntários de Coimbra podem dar mais à cidade do que têm recebido, mas para isso precisam de aguentar-se. “Aguentem-se”, disse mais do que uma vez, “aguentem-se”.

No final, ao despedir-me, perguntei ao senhor presidente: – Então, como é que posso ser sócio? – Olhou-me um pouco estupefacto, com um ar em tudo semelhante ao que vi em tempos, quando era miúdo, não andava sequer na escola, quando disse: – Sou sócio dos bombeiros!

Termino este texto confessando uma coisa, quero ser sócio novamente dos Bombeiros, não para ir na “bomba” quando morrer, mas porque senti vergonha de não ser há mais tempo…

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por Diário de um Bombeiro às 15:13


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